A trajetória da Embraer começou no final da década de 1960 com um pequeno e versátil turboélice bimotor, viabilizado por uma encomenda militar colocada pela Força Aérea Brasileira.
Nascia o Bandeirante, resultado da implementação de um complexo sistema de ensino superior aeronáutico e posteriormente aeroespacial na cidade de São José dos Campos e região do Vale do Paraíba, nos anos da década de 1940 em diante.
Do afamado EMB-310, a empresa partiu para o EMB-326 GB Xavante (AT-26), parceria binacional com a Itália repetida nos anos 80 e 90 com o Programa AMX, que deu origem ao Embraer A-1A/B.
Seu primeiro treinador avançado turboélice, o EMB-312 Tucano (T-27), sucesso mundial de vendas, foi sucedido pela nova geração, o EMB-314 Super Tucano, hoje produzido para o cobiçado mercado de Defesa norte-americano em parceria com a Sierra Nevada, e voando em combate no Afeganistão e outros locais.
Algumas aeronaves de projeto civil, adaptadas com roupagem militar, também se mostraram eficientes, caso dos bimotores turboélice Xingu e Brasília.
Com a ascensão dos jatos da Embraer no mercado internacional, em meados dos anos de 1990, começando pelo ERJ-145 e suas variantes, a fabricante brasileira de aviões experimentou mais uma atualização e inovação em seus métodos de projeto e produção, introduzindo computação avançada, design 3D com realidade virtual e dispondo de um corpo de engenharia altamente capacitado para lidar com essas ferramentas.
Os jatos comercias da família E-Jet, resultado dessa modernidade, conquistaram mercados nos cinco continentes, sedimentando o caminho para o lançamento de um audacioso e antigo plano da Embraer, um novo jato cargueiro multifuncional bimotor, de emprego militar, capaz de transportar até 23 toneladas de cargas, material e pessoal por longas distâncias, pousando e decolando de pistas na linha de frente, mesmo improvisadas e/ou danificadas pela ação do inimigo, pavimentadas ou não. Essa revolução de engenharia aeroespacial atende pelo nome KC-390. para fabricá-lo, a Embraer criou a nova Divisão Defesa & Segurança, consolidando também a produção do Super Tucano no Brasil e Estados Unidos.
Desafios de Engenharia na Eleb
O desenvolvimento e a construção do maior avião já produzido no Brasil impôs desafios para a indústria aeronáutica nacional , um exemplo é a fabricante de trens de pouso Eleb, sediada em São José dos Campos (SP). Foram necessários cinco anos de trabalho para conceber, projetar, desenvolver, testar e produzir o conjunto de trens de pouso principal e auxiliar para suportar as 84 toneladas do novo avião.
“O KC-390 traz a Eleb para um novo patamar”, disse o seu presidente, Luis Marinho "Sem o projeto, talvez a empresa levasse décadas para atingir o mesmo nível de desenvolvimento tecnológico e qualidade, a partir de parcerias com universidades e institutos. O cargueiro trouxe um aprendizado fundamental para alcançarmos o nível onde estamos hoje”, avaliou Marinho.
A Força Aérea Brasileira (FAB) é responsável por todo investimento no desenvolvimento do KC-390, futura espinha dorsal da aviação de transporte da instituição nos próximos anos. Por contrato, segundo a Comissão Coordenadora do Programa Aeronave de Combate (COPAC), a propriedade intelectual de tudo o que foi desenvolvido no programa KC-X é da União, de forma exclusiva ou de forma compartilhada com a Embraer Defesa & Segurança (EDS).
Para dar o novo passo, a Eleb inovou. “Foi duro, foi árduo”, disse o diretor de engenharia, Vladimir Taucci. “Do primeiro projeto ao início dos testes, foram 36 meses de trabalho de 33 engenheiros dedicados ao novo produto. As adaptações pelas quais a empresa passou envolveram todas as áreas, até a logística”, comentou. Há mais de 30 anos na empresa, o diretor de engenharia acompanhou toda a história da indústria aeronáutica brasileira.
A Eleb nasceu em 1984 para produzir, sob licença, os trens de pouso dos caças ítalo-brasileiros A-1 para a FAB. A experiência adquirida com os italianos a capacitou para produzir o trem de pouso da aeronave de caça leve A-29 Super Tucano.
Entre 1999 e 2008, compartilhou com a alemã Liebherr o desenvolvimento e a produção dos trens de pouso dos jatos comerciais da Embraer. A partir do programa do KC-390, a Embraer decidiu comprar os 40% da joint venture sob controle dos alemães e assumiu por completo a empresa.
Eleb domina novos processos
Os desafios estavam, especialmente, na usinagem de titânio e aço, as duas principais matérias-primas de alta densidade e resistência usadas na fabricação de cerca de 80% das novas peças, que têm dimensões muito maiores. Antes, para outras aeronaves de menor porte, predominava o uso de alumínio. Foi necessário rever processos e adquirir novas máquinas para a planta industrial onde trabalham 600 funcionários. Isso significou um investimento de US$ 10 milhões em aquisições, capacitação e desenvolvimento de novas tecnologias.
E ainda há investimentos a serem realizados. O tamanho das peças do KC-390 está a requerer um novo forno para o tratamento que reforça a resistência do material. No momento, esse tratamento é realizado no Canadá, mas deverá ser nacionalizado.
Segundo o presidente da empresa, o conhecimento adquirido na usinagem de grandes peças de titânio para o KC-390 facilitou o desenvolvimento do trem de pouso da nova geração de jatos comerciais da Embraer, batizada de E2-190. “Se tivéssemos que fazer o trem de pouso do E2-190 sem a experiência do KC-390, estaríamos em uma situação bem complicada”, avaliou Marinho.
Na lista de requisitos do avião, elaborada pela FAB, figurava a necessidade de suportar pousos em pistas não preparadas (terra), seja na Amazônia ou na Antártida; locais extremos e com condições adversas de temperatura.
A solução foi criar um sistema inédito de distribuição de peso sobre o trem de pouso principal. A patente da nova tecnologia, que foi depositada nos Estados Unidos e aguarda homologação, prevê que, ao tocar o solo, a viga balanço (também chamada de balancim) distribua com uniformidade a carga nas rodas. “Não havia nada no mundo e foi um grande desafio de engenharia”, explicou Taucci.
Diferente das opções existentes no mercado, esse produto faz com que o impacto seja absorvido de maneira mais eficaz pelo trem de pouso, melhora a performance no pouso e na decolagem e, também, no deslocamento em pistas não preparadas.
A empresa estima que o trem de pouso responda por 5% do valor da aeronave. “Do ponto de vista da fabricação, podemos compará-lo ao motor”, analisou Marinho sobre a complexidade e peculiaridade do equipamento. Entre os diversos sistemas embarcados, esse é um dos que apresenta maior valor agregado.
São poucas as empresas no mundo que fabricam o componente. Agora, a Eleb se junta à americana Gooddrich e à francesa Messier Dowty no pequeno grupo que domina todo o processo de desenvolvimento de trens de pouso de um avião.
De acordo com dados de 2015 (cedidos pela Eleb), o número de trens de pouso fabricados por ano fica em torno de 250 conjuntos, cada um deles é composto por dois ou três trens de pouso e leva, aproximadamente, três meses para ficar pronto. O conjunto de trens de pouso do KC-390 pesa 1,5 toneladas.
Cerca de 80% da produção da Eleb é destinada à Embraer, atendendo à família de jatos E-145, Phenom 300, Legacy 500/600. A empresa também fabrica o trem de pouso para o helicóptero S-92 da Sikorsky, muito usado no Brasil para operações off shore nas plataformas de extração de petróleo no mar.
Processo de fabricação
As principais peças do trem de pouso nascem de um grande bloco de metal. No caso do aço empregado no novo cargueiro, o bloco pode pesar 4,5 toneladas. O maciço é esculpido por meio de processos automatizados de pré-usinagem até ganhar o formato da peça. Antes de passar para a usinagem mais refinada, o material é tratado termicamente para triplicar a resistência.
Depois de passar horas em fornos a cerca de 470 °C e receber choque térmico na água, o valor de resistência do aço salta de 26 para 53. “O material tem dureza muito próxima a das ferramentas usadas para esculpir a peça”, contou o engenheiro mecânico Taucci. A usinagem é realizada em máquinas conhecidas como ‘cinco eixos’, que permitem trabalhar em três dimensões.
As peças recebem, ainda, banhos de proteção química, que variam de acordo com o material. Após cada processo de manufatura as peças são inspecionadas. Líquidos reveladores sob luz negra podem detectar eventuais microfissuras, mais finas que um fio de cabelo, não observáveis a olho nu, ocasionadas pelos tratamentos e usinagem. São os chamados ensaios não destrutivos e são realizados em 100% da produção.
Os componentes metálicos passam ainda por um processo que aumenta em dez vezes a resistência em fadiga. Para o alumínio, usa-se microesferas de vidro e para o aço, microesferas do mesmo material, que são bombardeadas usando ar comprimido por meio de braços mecânicos dentro de uma cabine. O processo se assemelha a uma pintura em pó.
Segundo o diretor de engenharia, o trem de pouso é um item muito resistente. “Pode quebrar uma asa, mas não o trem de pouso”, compara Taucci sobre um eventual acidente. O que pode ocorrer é o trem dobrar, um recurso para evitar maiores danos ao avião.
O trem do KC-390 inaugurou uma nova era de testes de simulação. Antes de os protótipos serem executados, o projeto foi testado em simuladores, o que incluiu testes de vibração e carga. Os resultados, baseados nas projeções elaboradas durante o desenvolvimento, foram verificados nos ensaios reais.
Durante o desenvolvimento de um novo trem de pouso, o protótipo passa por, pelo menos, cinco tipos diferentes de ensaio: queda livre, estático, fadiga, ambiente e endurance (durabilidade). Segundo o engenheiro Taucci, com mais de 30 anos de experiência no segmento, o primeiro deles é o mais complicado.
A queda livre simula todas as possibilidades de pouso suportando pesos superiores ao apresentado pelo avião. No caso do KC-390, foram mais de 150 toneladas. Para conseguir realizar esse teste, a Eleb construiu uma nova máquina de queda livre. São 17 metros de altura para reproduzir as condições do pouso.
Os testes incluem ainda ciclos de exposição do equipamento por horas consecutivas a baixas e altas temperaturas, que simulam condições climáticas ultra-severas encontradas nos trópicos. Os atuadores simulam também cargas e desgastes que equivalem a 30 anos de vida útil.
Imagens: EDS, Agência Força Aérea, Roberto Caiafa, ELEB